Conviver | Julho 2018
10/07/2018

Essa é uma reflexão sobre esse mundo acelerado que suprime o tempo de viver e nos impõe a não perceber os processos. O professor e filósofo, Mário Sérgio Cortella, que advoga uma sui generis “rejeição da despamonhalização da vida”, usa a metáfora da saborosa pamonha para criticar a imediatização do mundo em que tudo precisa ser instantâneo, do macarrão às relações afetivas. Sem saudosismo, o renomado educador pede a volta da preparação da pamonha como símbolo do resgate da convivência familiar. Os que possuem uma veia campesina certamente sabem disso. Nada mais trabalhoso do que preparar uma pamonha. É preciso colher o milho na roça, arrancar a palha, ralar, cozinhar e costurar o saquinho de palha. Vai um dia inteiro, mas as crianças e os adolescentes aprendiam que por trás de uma pamonha na mesa havia um longo processo de trabalho, uma divisão de tarefas e horas de convivência para que esse prazer pudesse, enfim, ser compartilhado. Preparar a pamonha também era uma chance para exercitar a paciência.

Nosso propósito nessa reflexão não é de resgatar outros tempos num movimento nostálgico do “era boa aquela época”. Aprovamos a evolução dos tempos e reconhecemos o quanto os novos tempos trazem melhorias significativas em diferentes áreas. O mote para a reflexão é apenas de preservar a infância. É preciso deixar os pequenos perceberem a mensagem de Guimarães Rosa – “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.

Boa leitura

Luiza Sassi

 

Num mundo de processados, a criança não aprende o que é processo

Ouvi de uma menina beirando os 8 anos que seu sonho era fazer uma boneca, não importava como ela fosse. Podia ser de papel, de pano, de milho, como a que fez nas férias com a prima que mora no interior do Ceará (as mesmas que sua mãe fazia na infância). Sua fala me surpreendeu e me encantou. Ela estava na contramão do desejo da maioria das meninas de sua idade por bonecas industrializadas.

Aqui, não vem ao caso o significado deste desejo, mas o episódio me fez pensar no quanto as crianças de hoje estão sendo isentas dos processos de feitura. Tudo vem pronto, processado – pela indústria ou outras pessoas.

Durante um bom tempo, os brinquedos foram construídos pelas crianças, com sua participação ou pelo menos com sua presença ao lado de quem o executava. A criança tinha a oportunidade de acompanhar, se não todo o processo, uma parte dele. À criança eram transmitidos conhecimentos sobre como fazer, bem como histórias que envolviam tal brinquedo ou brincadeira. O desejo de ter atravessava o fazer e a espera.

Isto não se limitava à confecção de brinquedos. A criança vivenciava começo, meio e fim, antes e depois, nas pequenas coisas cotidianas. Para chupar laranja era preciso descascá-la. Para comer bolo, fazê-lo. Para ter um cachorro, esperar que alguma cadela pudesse parir. Para morar na casa própria, era possível vê-la ganhando forma dia após dia.

Hoje, não é surpresa para ninguém uma criança não saber descascar e chupar laranja; não saber que bolo é feito com manteiga, farinha, ovo ou ingredientes que os substituam; não saber que cachorro mama na cadela e que para construir uma casa se usa tijolo, cimento e outros materiais.

Em um mundo no qual nossas necessidades e desejos vêm prontos (até o cachorro sai de vitrine!) – ou são sempre possíveis de serem realizados – as crianças estão sendo eximidas da participação nos processos das coisas mais banais da vida. O tempo é do instantâneo, do imediato, do sem espera.  Por isto mesmo, o tempo é do desprezível, do descartável, do usa e joga fora – de caixas longa vida às relações afetivas (para não dizer a própria vida).

Sei que existe um passado que não volta mais e que a vida contemporânea está cheia de privilégios que antes não existiam. Qualquer época é regada de aspectos positivos e negativos. No entanto, penso que é primordial indagar como nossas crianças enfrentarão os desafios que a vida apresenta, se estamos mergulhados num mundo em que raramente é dado tempo de maturação; ou seja, tempo para que um processo aconteça, com todas as etapas envolvidas, inclusive a resolução de dúvidas, conflitos e o encontro de soluções.

Creio que existe uma correlação entre o tempo do instantâneo e as sensações de esvaziamento e de falta de sentido vivenciadas por muitos, inclusive crianças, que têm se deprimido ou apresentado outros sintomas porque não participam ativamente de suas próprias vidas. Há sempre um gestor externo, do publicitário à família e a sociedade. Há sempre um preenchimento do que parece vazio ou faltante.

Os processos são constituídos de ciclos, ordem e limites. Quando abolidos da vida das crianças (e adultos), fica muito difícil suportar o que não vem pronto e imediatamente, o que pode gerar muito sofrimento.

Não há como combater o tempo, mas é possível que as crianças sejam ativas nos processos que envolvem sua vida. Para isso, é preciso incentivar sua participação nos processos que a envolve direta e indiretamente. É preciso que criança possa ser criança e que adulto seja adulto. É preciso permitir a criança testar, experimentar e errar. É preciso estar junto, suportando o tempo da espera e do ritmo de cada um.

 

Por Patrícia L. Paione Grinfeld, Psicóloga,  para o site “Ninguém cresce sozinho”, rede destinada a questões e reflexões relacionadas a primeira infância.