Conviver | Junho 2016
30/06/2017

A criação de um ambiente educacional que preze pela aceitação de diferenças depende de toda a comunidade escolar, seja dos alunos, dos professores, da coordenação e, também, dos pais. Por isso, os pais e responsáveis do GayLussac foram convidados a participar de uma palestra com o professor e psicanalista César Mussi Ibrahim, no Teatro GayLussac. A fala de Ibrahim instigou a reflexão sobre o tema da convivência no mundo contemporâneo. Dando continuidade às reflexões de Ibrahim, convidamos a todos à leitura da entrevista dele para o Projeto Criança e Consumo.

Boa leitura,

Luiza Sassi

Direção Pedagógica

 

Para crescer, tem que frustrar”

 C e s a r I b r a h i m é Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com formação psicanalítica. Iniciou a atividade clínica em 1984, com o atendimento de adultos e adolescentes, ampliando o trabalho para a psicoterapia de família.

Seu foco é compreender as dificuldades enfrentadas pelos educadores na maneira de conduzir a formação de pessoas, que devem ser capazes de se constituir psiquicamente de forma autônoma. Além disso, trabalha com adolescentes para mostrar-lhes que a vida também é feita de frustrações.

Nesta entrevista ao Projeto Criança e Consumo, Cesar explica que a fantasia da felicidade constante, muitas vezes incentivada pelos próprios pais, pode ser extremamente nociva à saúde emocional dos filhos.

 

Estresse Familiar

 Projeto Criança e Consumo – Sua rotina de trabalho inclui atendimento clínico e também atendimento a grupos de crianças e adolescentes. Que tipo de questão é abordado nesses grupos? Como funciona a dinâmica?

Cesar Ibrahim – Eu trabalho com crianças, adolescentes e jovens em atividade clínica, e a prevalência é pelo atendimento a grupos de seis ou sete pessoas. Abordamos, principalmente, a questão universal dos adolescentes, que é a dificuldade de crescer e de avançar no desenvolvimento emocional e assumir as exigências que o mundo vai, pouco a pouco, impondo. Procuro mostrar os caminhos que fazem os jovens perceberem e entenderem que certos acontecimentos da vida, como o fracasso e a decepção, são importantes para o amadurecimento de todos. Minha ideia é mostrar o inverso do que eles são induzidos a acreditar: o conceito de felicidade e alegria sem a existência de frustrações e tristezas.

 Os grupos são formados dentro de escolas ou são independentes?

 

Exerço um trabalho clínico dentro do consultório e participo também de atividades em universidades, com educadores, terapeutas e profissionais que lidam com crianças e adolescentes. Eventualmente trabalho com escolas, com profissionais de educação, com intuito de contribuir para o desenvolvimento emocional do aluno. Abordamos qual é o papel da escola no psiquismo de crianças e adolescentes e na formação de seres humanos menos suscetíveis a impressões e influências impostas pela cultura do Século XXI. Uma cultura que exacerba a fantasia de uma vida excepcionalmente feliz, alegre, agitada e indolor. É isso que nós encontramos na farmácia, por exemplo, onde há a cura para tudo, para a insônia, a tristeza, a depressão, a ansiedade, além de todas aquelas vitaminas que são dadas para a criança, como se fossem uma solução para todos os males existentes.

 Temos, hoje, muitos problemas na formação da criança decorrentes do consumismo, incentivado em nossa sociedade de diversas formas. O consumo é um assunto relevante nesses grupos que você atende?

A questão do consumo aparece, mas não de maneira tão direta. No entanto, o consumismo está presente o tempo todo na relação do adolescente com o mundo e de diversas formas. Hoje, existe uma marca muito forte da cultura que é a relação entre o prazer e a responsabilidade, o dever. Nessa linha, é importante ressaltar algumas mudanças que ocorreram nos últimos anos. Os tempos atuais, ditos como mais hedonistas, marcaram por completo a relação da família com os filhos. Privilegia-se, quase o tempo inteiro, a relação das crianças e dos adolescentes com o prazer. Sendo assim, a preocupação fundamental dos pais de classe média, principalmente nos centros urbanos do mundo ocidental, é a felicidade dos filhos, ou melhor, a ideia do que é felicidade.

 Que impacto essa preocupação excessiva dos pais em fornecer prazer aos filhos pode ter no desenvolvimento infantil?

De maneira geral, essa marca da cultura está diretamente ligada ao imediatismo do prazer, e isso, é claro, vai se desdobrar na relação com o consumo. O desejo tende a ser satisfeito sob essa forma materializada, que tem um movimento compulsivo – já que, na verdade, ela é insaciável. O jovem, que troca o tempo todo o seu objeto de desejo, no fundo persegue a fantasia idealizada de que haverá uma forma de obter prazer quase sempre com caráter imediato, e como se isso pudesse compor essa pseudofelicidade, aquela que os pais esperam para os filhos. O processo funciona como se fosse uma missão que os pais atribuem a si mesmos para proporcionar uma existência quase analgésica aos filhos, ou seja, uma existência indolor, que não inclui a frustração. O que podemos ver, a partir dessa marca da cultura hegemônica hedonista, é a tentativa dos pais de injetar uma espécie de anestésico existencial, uma blindagem emocional comprometida com o prazer o tempo inteiro.

 

Ainda sobre a preocupação dos pais com a alegria dos filhos, você pode dar exemplos dessa relação entre a busca da felicidade e o consumo?

 

Um exemplo bastante frequente é a vontade de trocar de celular, comprar um iPhone, novos produtos eletroeletrônicos ou qualquer outro objeto de consumo. Essa vontade se coloca a serviço dessa ideologia, a princípio muito bem-intencionada dos pais, que querem promover a felicidade dos filhos a todo custo. Eles não sabem o que fazer e nem como fazer, mas acreditam que se puderem fazer os filhos atravessarem a infância e a adolescência sem dor e sem esforço, a missão será cumprida. No fundo, sabemos que é exatamente o contrário. Para crescer, tem que frustrar. Portanto, eventualmente, o desejo deve, sim, ser barrado. Sobre esse assunto, temos tanto o ponto de vista material quanto o ponto de vista emocional, amoroso. Grande parte dos adolescentes se depara com aquela situação típica da vida escolar: o meu objeto amoroso não me quer. E assim deflagra-se a relação do sujeito com a inevitabilidade da dor.

 

Na sua opinião, existe, no ambiente escolar, a preocupação em ensinar a lidar com o fracasso?

 

A escola está cada vez mais articulada nessa necessidade de frustrar, principalmente pela recorrência desse assunto. Existe o comprometimento de mostrar que a vida acadêmica dá trabalho e que, por isso, exige muita dedicação e renúncia ao prazer imediato, por exemplo. Freud ressaltava muito a importância de a pessoa renunciar o movimento na direção do desejo para poder crescer. Nesse sentido, é preciso mostrar ao jovem que é exatamente a renúncia que fortalece e que projeta o ser humano para o seu desenvolvimento, e que o contrário também é verdade: a fantasia de que a satisfação plena entorpece e paralisa é cada vez mais comprovada clinicamente.

 

Em seu trabalho nas escolas, existe também a questão do pertencimento. O jovem quer se sentir parte de algum grupo e acredita que a posse de bens ou o comportamento pode influenciar isso?

 

Sim, existe. Isso é parte integrante do desenvolvimento. É o que chamamos de tripé da modernidade: fama, beleza e riqueza. O adolescente quase sempre busca ser o popular, o bacana, constituir identidade própria. É nesse meio em que ele encontra o seu par, a partir de quem ele busca aceitação e vai constituir a sua identidade e a trajetória a ser seguida. Nesse aspecto, as substâncias químicas, por exemplo, revelam o sintoma social do prazer imediato. Resta saber como a pessoa vai agir diante disso. O adolescente que foi suficientemente frustrado quando criança ao longo de uma educação dentro de casa provavelmente será capaz de dizer “não” às substâncias químicas com as quais vai, inevitavelmente, deparar-se ao longo da adolescência. Ele vai ter segurança e clareza suficientes para agir de maneira consciente. Já aquele que não foi suficientemente frustrado, que não foi contido nesse desejo avassalador, que não foi ensinado e não aprendeu a conviver com a falta, provavelmente será mais suscetível às substâncias químicas. A questão do consumismo é parte dessa busca da humanidade na direção de estabelecer uma relação plena com o prazer absoluto.

 

Os meios de comunicação, principalmente a televisão, exercem um papel importante nas questões ligadas ao consumismo. Qual é a influência da mídia nessas questões?

 

Alguns autores tendem a responsabilizar a mídia. No meu entender, a mídia está comprometida com uma série de variáveis. Acredito que a questão não seja exatamente a influência da mídia sobre a criança e o adolescente. Depende muito da maneira como a educação leva a criança e o adolescente a lidar com os efeitos inevitáveis a que são submetidos, principalmente dentro de casa. Eu não tenderia a demonizar a mídia. Para mim, o fundamental é como a educação e a constituição do psiquismo de uma criança foram formadas no sentido de levá-la a lidar com essas variáveis. E aí, sim, a mídia pode ser responsável pela má-formação de um indivíduo.

 

Os pais e as escolas têm consciência de que muitas vezes eles são os responsáveis pela falta de segurança emocional das crianças e pela falta de maturidade para lidar com os fracassos que elas enfrentam?

 

Infelizmente, essa consciência é praticamente inexistente nos pais. Estamos falando de um contexto que é muito específico, de adultos que nasceram no Século XX, movidos por expectativas, idealizações, desejos e sonhos de classe média e com intenção de produzir para os filhos uma existência em que nada falte a eles, tanto do ponto de vista material como emocional. Infelizmente, a consciência dessa questão ainda é muito precária. O que vemos com mais frequência, hoje, são pais comprometidos em atender à demanda dos filhos, como se isso pudesse produzir a felicidade que eles tanto querem construir e fazer ser possível. Muitos deles pensam que o simples fato de não frustrar os filhos fará, automaticamente, eles serem felizes e tudo dar certo. Já as escolas estão começando a se curvar um pouco mais para essa questão. Esse é um sintoma social, da contemporaneidade, tema que vai ser cada vez mais discutido pelos educadores e profissionais ligados à escola.